sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Três faces da Revolução

Como sucessivas vezes temos exposto em "Catolicismo", a explosão protestante do século XVI, a Revolução Francesa, a Revolução comunista constituem como que as três fases de um imenso movimento, uno pelo espírito, pelos objetivos e até pelos métodos.

Na figura de três de seus chefes, a secção "Ambientes, Costumes, Civilizações" procura fazer ver hoje alguns dos traços de alma desse movimento, isto é, algo do espírito da Revolução.

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No retrato de Lutero morto (quadro de Lucas Fortnagel, Biblioteca da Universidade de Leipzig), uma análise detida revela, na grosseria dos traços, a nota característica do demagogo cheio de si, do arruaceiro cuja pregação tantos erros e tanta revolta espalhou, e tanto sangue fez verter. Mas a impressão que salta desde logo aos olhos, e se torna definitiva no espírito do observador, é a sensualidade, o amor exagerado aos regalos de toda ordem, que provoca já no primeiro olhar uma sensação confrangedora.

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Em Robespierre, cuja máscara mortuária conservada no Museu Tussaud aqui reproduzimos, o que se exprime principalmente é o ódio. Um ódio tão profundo, tão avassalador, que, sem ter abolido a sensualidade, constitui a nota dominante da fisionomia. Esses lábios cerrados para sempre parecem entretanto ainda destilar algo das pregações de violência e de morte da era do Terror. Esses olhos que já não vêem parecem conservar uma expressão de ódio viperino. A fronte abaulada dá a sensação de ainda ruminar peças oratórias incendiárias e planos de subversão. Ele todo não é senão ódio igualitário, tanto no plano especulativo como no militante, desejo imenso de destruir tudo quanto, a qualquer título, lhe é superior.

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O terceiro clichê apresenta Ernesto "Che" Guevara, o argentino transplantado para Cuba, que exprime tão autenticamente o cunho marxista da revolução cubana. Os cabelos, que parecem não ser de há muito nem cortados nem lavados, um bigode ralo e esfiapado cujas extremidades acabam por se unir a uma barbicha de contornos incertos, formando tudo para o rosto uma só moldura de desalinho e desordem, causam repulsa instintiva, mas visam despertar uma impressão de naturalidade e despretensão, levada ao extremo. De sua parte, o olhar, de uma luminosidade incomum, e o sorriso procuram dar uma certa idéia de bonomia e afabilidade um pouco mística. Este homem dulçuroso é um dos suportes do regime do "paredón" onde tantas vítimas têm sido cruelmente imoladas. Do regime que está movendo contra a Igreja uma perseguição inteiramente do estilo de Robespierre ou de Lenine.

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Se a fisionomia de Lutero exprime sobretudo a avidez dos prazeres do corpo, e a de Robespierre sobretudo o ódio igualitário, a de "Che" Guevara representa uma das máscaras mais recentes da Revolução, isto é, a bonomia insincera, a velar a pior das violências.

(Plinio Corrêa de Oliveira, Catolicismo nº 121, Janeiro de 1961)

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Um edifício de coerência a serviço da Fé


O primeiro aspecto que chama atenção na escultura do homem que figura nesta foto (*) é o modo de estar de pé. Tal escultura pode bem representar o cruzado no apogeu da Idade Média. Ele apresenta um equilíbrio de corpo perfeito. Os pés não são pés chatos, como os de pato, com a precária firmeza deste. Não. É a estabilidade corporal do homem, na qual não falta uma certa nota de elegância, em que entra algo de espiritual. As pernas, o tronco, os braços, representam a solidez física perfeita de um homem que venceu a ação da gravidade.

Ele não cedeu em nada à preguiça. Mas também não está efervescente, não tem a mentalidade do homem de negócios, que fala em cinco telefones ao mesmo tempo... Mantém-se inteiramente tranqüilo, mas de uma tranqüilidade tal, que seu repouso se volta inteiro para a ação. E atuação que já é, de uma vez, a guerra. A mais absorvente de todas as atividades, aquela que se opõe mais diretamente à preguiça. Não é o trabalho, é a luta. Ele está numa posição em que a qualquer momento pode iniciar o combate. Está fazendo uma proclamação com os grandes braços abertos. É a proclamação perfeita de quem anuncia e ameaça.

Por outro lado, o cruzado permanece numa atitude contemplativa. Sua fisionomia indica que ele não está vendo o que se passa em torno de si. Está olhando dentro de si mesmo. E de dentro de si considera um ideal inteiramente superior, que lhe ilumina a alma: são os princípios a favor dos quais o homem é obrigado a combater.

Ele todo é um edifício de coerência, de metafísica, pronto para descarregar o golpe. Todas as razões do combate lhe estão presentes, tudo raciocinado, coerente, positivo. É um homem profundamente sério. Se acontecer qualquer coisa diante dele, sua visão será a da realidade inteira. Não irá exagerar, nem subestimar, nem torcer a realidade, nem mentir. Ele vê o que acontece e diz o que vê. É o varão sério por excelência.

(*) Cavaleiro do Credo, do famoso escultor Emmanuel Frémiet (1824-1910)

(Plinio Corrêa de Oliveira, excertos conferência, 22 de abril de 1967)

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Esplendor da concepção hierárquica e cristã da vida

A onda satânica do igualitarismo, que desde a revolução protestante do século XVI até a revolução comunista de nossos dias, vem atacando, caluniando, solapando, e fazendo definhar tudo quanto é ou simboliza hierarquia, apresenta toda desigualdade como uma injustiça. Está na natureza humana - dizem os igualitários - que o homem se sinta diminuído e vexado em curvar-se ante um superior. Se o faz, é porque certos preconceitos ou o império das circunstâncias econômicas o obrigam a tal. Mas esta violência à ordem natural das coisas não fica impune. O superior deforma sua alma pela prepotência e pela vaidade que o levam a exigir que alguém se curve ante ele. O inferior perde com seu gesto subserviente algo da elevação de personalidade própria ao homem livre e independente. Em outros termos, sempre que uma pessoa se curva ante outra, há um vencedor e um vencido, um déspota e um escravo.

A doutrina católica nos diz exatamente o contrário. Deus criou o universo segundo uma ordem hierárquica. E dispôs que a hierarquia fosse da essência de toda ordem verdadeiramente humana e católica.

Em contato com o superior, o inferior pode e deve tributar-lhe todo o respeito, sem o menor receio de se rebaixar ou degradar. O superior, por sua vez, não deve ser vaidoso, nem prepotente. Sua superioridade não decorre da força, mas de uma ordem de coisas muito santa, e desejada pelo Criador.

Na Igreja Católica, os costumes exprimem com admirável fidelidade esta doutrina. Em nenhum ambiente os ritos e as fórmulas de polidez consagram mais acentuadamente o princípio de hierarquia. E em nenhum, também, se vê tão claramente quanta nobreza pode haver na obediência, quanta elevação de alma e quanta bondade pode haver no exercício da autoridade e da preeminência.

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Numa Cartuxa espanhola, um monge oscula, genuflexo, o escapulário de seu superior. É a expressão da mais inteira sujeição.

Entretanto, considere-se atentamente a cena, e se verá quanta varonilidade, quanta força de personalidade, quanta sinceridade de convicção, quanta elevação de motivos o humilde monge genuflexo põe em seu gesto. Contém este qualquer coisa de santo e cavalheiresco, de grandioso e singelo, que faz pensar ao mento tempo na "Legende Dorée", na "Chanson de Roland", e nas "Fioretti" de São Francisco de Assis.

Como, genuflexo, este religioso humilde e desconhecido é maior do que o homem moderno, molécula enfatuada, impessoal, anônima e sem expressão, da grande massa amorfa em que se transformou a sociedade contemporânea.

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Depois da humildade do monge, consideremos a do gentil-homem.

O Conde Wladimir d’Ormesson foi até há bem pouco embaixador da França junto à Santa Sé. Em nosso clichê, vemo-lo, revestido do fardão solene de diplomata, ajoelhado ante o Santo Padre Pio XII por ocasião de uma audiência. Seria difícil imaginar uma atitude que exprimisse, tão completamente e ao mesmo tempo, uma alta consciência de sua própria dignidade e um vivo respeito ante a autoridade excelsa e suprema, em face da qual o embaixador tem a honra de se encontrar. O joelho em terra, mas o tronco e o pescoço eretos, a nobreza e a reverência do cumprimento, tudo enfim mostra quanto respeito e quanta dignidade se contém nos tradicionais estilos diplomáticos, dos quais o Conde se mostra aqui intérprete fiel, e que foram elaborados nos séculos áureos da civilização cristã.

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De sua parte, considere-se o Prior. Há como que um contraste entre seu grande vulto branco, ereto, robusto, estável, que exprime autoridade, segurança e paterna proteção, e a expressão fisionômica que parece neutra, impassível, serena, um pouco distante. O vulto exprime a atitude oficial do Prior. A fisionomia traduz o desapego, a simplicidade do homem. Pois não é ao homem enquanto tal, mas ao cargo, que a homenagem se dirige.

E, com o devido respeito, consideremos a posição do Pontífice. Sentado em um pequeno trono, ele não se levanta para receber a homenagem do embaixador. Entretanto, inclina ligeiramente o busto para se aproximar mais do Conde. Conserva sua mão na dele. Dá a toda a acolhida uma nota de amenidade muito marcada. E, mantendo-se embora inteiramente como Papa, dá todas as mostras da mais entranhada benevolência e do maior apreço para com o embaixador.

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Quatro atitudes, inspiradas numa visão muito hierárquica das coisas, todas nobres, dignas, honrosas, embora cada qual a seu modo. Em uma palavra, esplendor da humildade cristã e formosura de uma vida hierárquica...

(Plinio Corrêa de Oliveira, Catolicismo nº 70, Outubro de 1956)

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Tipos humanos característicos

Albrecht Dürer, o célebre pintor alemão (1471-1528), deixou-nos este auto-retrato (auto retrato aos 26 anos; Museo del Prado, Madrid), famoso não só pela beleza do modelo, como sobretudo pelo valor artístico do trabalho.

Deixamos de lado qualquer consideração estética ou artística, para considerar a tela do ponto de vista do ambiente, dos costumes e da civilização que nela se refletem. Dürer é um homem da Renascença, com todas as contradições, desvios, extravagâncias e atributos que se contêm neste apelativo. Ainda ligado à Idade Média, entretanto em sua fisionomia não se refletem os valores sobrenaturais de uma alma verdadeira e profundamente cristã. Ele é inteiramente natural em todos os seus predicados: inteligência lúcida e profundamente crítica, grande riqueza de personalidade, indiscutível originalidade de espírito, vontade de ferro. Vendo-o, não se dirá que é um cristão, mas não se poderá negar que é um homem ( na medida em que esta perigosa distinção pode ser aceita ). Era este gênero de homens que o Ocidente do século XVI produzia, formava, honrava, e proclamava como salientemente e tipicamente seus.

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Comparemos os valores naturais (pois queremos ficar estritamente neste terreno) de um homem-tipo de seu tempo, com os que possivelmente existem neste jovem de nossos dias.

Tal é o contraste, que a comparação até dói. Este pobre ser sem profundidade mental, sem personalidade definida, sem princípios, sem convicções, sem fibra - que parece saber apenas sorrir, e sorrir sem motivo preciso -, certamente não tem a grandeza de qualidades humanas de Dürer. Compare-se a distinção de um, com o laisser faire de outro; a seriedade de um e a profunda e substancial superficialidade do outro; a fibra de um e o jeito bon enfant do outro: o contraste não poderia ser maior.

Quem é este jovem? Não é um anônimo, nem um "marginal". Pelo contrário, seus colegas de uma grande universidade americana o proclamam a figura exponencial - do ponto de vista da personalidade e da simpatia - de todo o corpo discente. Este é o tipo humano que com mais facilidade atrai a estima, o interesse, o entusiasmo dos que têm uma mentalidade inteiramente formada segundo o gosto do século XX.

(Plinio Corrêa de Oliveira, Catolicismo nº 10, Outubro de 1951)

Dois ideais femininos

A Serva de Deus Maria Clotilde de Sabóia Napoleão (1843-1911), insigne não só por seu nascimento e por sua alta distinção pessoal, como também por sua virtude, será talvez elevada às honras dos altares, pois já se processa a causa de sua beatificação. Pela nobreza de seu porte representa ela o tipo característico da dama cristã no século passado, toda feita para a vida de sacrifício, principalmente no lar, para as grandes dedicações da mãe e da esposa segundo o espírito da Igreja. Apesar de muito feminina, espelha em seu todo uma firmeza notável, que não exclui, aliás, uma grande bondade. Em suma, pode ser tida como expressão autêntica do verdadeiro ideal feminino.


Ana Pauker (*) representa o arquétipo da mulher conformada segundo as normas do comunismo. Grosseira, masculinizada, não denotando nem o recato nem a dedicação que a situação da mulher na sociedade exige, é a virago desabrida e sem sentimentos, própria para a era de brutalidade e mecanicismo cujo advento o neo-paganismo moderno prepara.

(*) Ana Pauker (1893-1960) foi Ministra das Relações Exteriores da Roménia e líder oficiosa do Partido Comunista Romeno, após a 2ª Guerra Mundial.

(Plinio Corrêa de Oliveira, Catolicismo nº 21, Setembro de 1952)

O problema da velhice: maturidade ou decadência?

Nossa época sente vergonha da velhice. Este sentimento está tão radicado, que mesmo o que de longe a ele toca lhe desagrada.

Assim, tanto quanto possível, evita-se até parecer ter idade madura. Todo o mundo quer parecer moço. E não são raros os que almejam parecer mocinhos.

Nestas afirmações não vai qualquer exagero. Basta que cada qual olhe em torno de si, e quiçá até para si.

Toda a maquilagem feminina representa um esforço não só no sentido de diminuir a idade, mas de aparentar - tanto quanto o implacável rigor da natureza permita - uma mocidade quase próxima da adolescência. As cores e as formas dos trajes, as atitudes, os gestos, a linguagem, os temas de conversa, o riso, tudo enfim é explorado no sentido de acentuar esta impressão. Os homens não usam maquilagem, senão às vezes nos bigodes e nas têmporas. Mas cada vez mais os trajes típicos da idade madura vão sendo por eles abandonados: as linhas severas, as cores discretas, o feitio sóbrio vão cedendo lugar ao feitio esportivo, às cores claras, às linhas lampeiras. Isto se nota sobretudo nas praias de banho, onde não é raro ver graves professores, políticos de renome, banqueiros sisudos, vestidos precisamente como os netos: pés semi-descalços, cabelos ao vento, blusinha amarelo-canário, calção azul celeste que nem de longe chega ao joelho, felpo à mostra nos braços e nas pernas, risinho brejeiro na boca velha, uma luz factiça mantida à custa nos olhos cansados, e em tudo um tremendo esforço para ocultar uma idade que pertinazmente se atesta, se afirma, se proclama a si mesma por todos os poros.

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Por que tudo isto? Antes de tudo, porque o homem pagão de nossos dias vive para o prazer, e a idade do prazer é por excelência a juventude; pelo menos para os que não compreendem que a mocidade, como escreveu certo autor, não existe para o prazer mas para o heroísmo.

Mas há outra razão. É que a velhice, se pode representar a plenitude da alma, é certamente uma decadência do corpo. E, como o homem contemporâneo é materialista e tem os olhos fechados para tudo quanto é do espírito, claro está que a velhice lhe há de causar horror.

Mas a realidade é que, se um homem soube durante toda a vida crescer não só em experiência, mas em penetração de espírito, em bom senso, em força de alma, em sabedoria, sua mente adquirirá na velhice um esplendor e uma nobreza que transluzirá em sua face e será a verdadeira beleza de seus últimos anos. Seu físico poderá sugerir a lembrança da morte que se aproxima. Mas em compensação sua alma terá lampejos de imortalidade.

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Exemplo memorável do que afirmamos é, em nossos dias, Winston Churchill, a cuja inteligência rutilante de lucidez, a cuja vontade de ferro um grande povo confiou a mais difícil das tarefas, que é reerguer um Império decadente.

Nossa primeira gravura o apresenta aos 34 anos. É indiscutivelmente um moço bem apessoado, inteligente, de futuro. Mas nem seu olhar tem a profundeza, nem o porte a segurança, nem a fisionomia a força hercúlea da fotografia de Churchill em sua velhice, que apresentamos em nosso segundo clichê.

A mocidade sem dúvida se foi, e com ela a louçania. Mas a alma cresceu enquanto o tempo marcava implacavelmente o corpo. E esta alma é por si só a coluna sobre a qual repousa todo um Império.

Isto é - ainda mesmo na ordem meramente natural - a glória e a beleza do envelhecer.

Quantos e quão mais decisivos seriam esses comentários se quiséssemos considerar os dados sobrenaturais do assunto!

(Plinio Corrêa de Oliveira, Catolicismo nº 12, Dezembro de 1951)

domingo, 10 de julho de 2016

Popularidade de hoje e de outrora

O contraste entre a indumentária, a atitude, o porte destes dois homens - um Rei da França antes da Revolução, e um presidente dos Estados Unidos no século XX - é tão imenso que parece tornar impossível qualquer comparação. E, com efeito, não pretendemos estabelecer aqui um paralelo entre um homem e outro, o que seria perfeitamente desinteressante para esta secção, que não estuda homens pessoalmente considerados, mas somente sociedades humanas, costumes, ambientes e civilizações.

Para definir bem precisamente o ponto de vista em que nos situamos neste comentário - pois que se trata mais de um comentário do que de uma comparação - devemos lembrar antes de tudo um princípio de caráter genérico. Todo o grupo humano produz, por um processo de lenta elaboração psicológica, e quase diríamos de destilação, certos tipos que encarnam especialmente as qualidades e notas características do grupo. Assim, há jogadores de boxe com os mais variados traços fisionômicos, mas há um tipo ideal clássico de jogador de boxe, de que uns se aproximam mais, e outros menos, mas que, de certo modo, cada um realiza em si. O mesmo se poderia dizer dos locutores de rádio.

Há naturalmente entre eles a maior variedade fisionômica, e mesmo técnica. O modo por que se dirigem ao público, o modo por que apresentam a matéria, o timbre e a inflexão da voz variam quase ao infinito. Entretanto, considerado o assunto em tese, poder-se-ia dizer o mesmo de todas as profissões, desde as mais altas às mais modestas, desde as mais antigas às mais modernas. Ora, todo grupo humano sente uma especial inclinação pelos tipos que o exprimem caracteristicamente. É um reflexo muito explicável do amor que o grupo tem aos seus ideais, a sua mentalidade, e a seu próprio modo de ser. Daí a popularidade, não só de certos homens, mas de certos tipos literários que nunca tiveram existência real, e até certas figuras de caricatura e "charge", como Juca Pato, que representava o pequeno burguês sensato, observador fino e ao mesmo tempo algum tanto ingênuo, e Jeca Tatu, a caracterização pitoresca, se bem que muito exagerada, do caipira brasileiro.

Sentindo ao vivo a força da popularidade decorrente deste principio genérico, reis e chefes de Estado procuraram, em todo o tempo encarnar em si a alma nacional. Este propósito terá sido apenas instintivo em uns, mais nítido em outros, inteiramente explícito e intencional em alguns poucos, mas de um modo ou do outro - genericamente consideradas as coisas - todos os Chefes de Estado, em todos os tempos, procuram cercar-se de exterioridade próxima ou remotamente tendentes a espelhar um certo ideal social coletivo, constituindo-se assim alvo do apreço e da simpatia geral.


O primeiro clichê é um quadro oficial de grande circunstância, pintado por Rigaud [Hyacinthe Rigaud: Portrait de Louis XV, 1727-1729, Versailles, Musée National du Château], e representando Luiz XV revestido de todas as insígnias reais. Que o pintor tenha sido Rigaud, e o modelo Luiz XV, importa pouco a nosso estudo, pois que esta indumentária e estas insígnias se perdem, por assim dizer, na noite dos tempos, tendo servido também aos ancestrais do Rei. O que interessa é que se trata de um quadro oficial, em que a atitude, o porte, a expressão, a roupagem do modelo, e, pois, em conseqüência, em certa medida, a própria técnica do pintor obedecem a cânones já consagrados como capazes de impressionar favoravelmente e "gerar popularidade".

Paira no quadro uma atmosfera de majestade, acentuada pelo grande manto violeta forrado de hermínia, e bordado de flores de lis de ouro, pelo esplendor das insígnias reais. Defensor da Igreja, primeiro gentil-homem de seu Reino, reunindo exponencialmente em sua pessoa toda a distinção e requinte de uma nobreza que por sua vez é o expoente da própria nação, um Rei de França encarnava assim todos os ideais de uma sociedade em que a Fé, a tradição, a destilação de valores através de um processe formativo de base familiar, realizado durante séculos pelas famílias de escol, eram elementos dos mais essenciais das Instituições, geralmente aceitos e prezados pela psicologia coletiva. Quanto mais alto, mais poderoso, mais requintado o Rei, tanto mais ufano e dignificado o povo.

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Precisamente no tempo de Luiz XV, esta mentalidade começou a mudar, minando a sociedade e preparando a Revolução Francesa de que saiu todo o mundo contemporâneo.

Essencialmente igualitária, a Revolução Francesa modificou os critérios de popularidade. Os grupos humanos não se sentiram mais encarnados e representados por suas figuras exponenciais, pois que a figura exponencial é produto de uma seleção e toda a seleção é anti-igualitária. A popularidade cessou de convergir para os homens excepcionais, superiores, para se concentrar nos homens-tipo, nos homens massa. Daí o fato de os quadros oficiais representando os chefes de Estado de casaca, e com todas as condecorações, haverem perdido quase toda a capacidade de gerar popularidade. Para ser popular, o Chefe de Estado não deve provar que é mais do que os outros. Muito pelo contrário, deve provar que não é mais do que ninguém, que é como todo o mundo. Por isso, os quadros oficiais ficaram para as paredes dos grandes salões nobres que vivem vazios e fechados, exceto em raros dias de gala. E os chefes de Estado começaram a se fazer ver pelo público sobretudo em jornais e revistas, fotografados nas atitudes comuns da vida quotidiana. Procuram fazer esquecer pelo público, que são Chefes de Estado, para aparecerem como simples burgueses, na era da burguesia... Aí temos, pois, o Presidente Truman, numa fotografia de página inteira de uma revista americana, tocando burguesmente seu piano. Cumpre acentuar que isto não pode ser considerado tipicamente norte-americano. Estes ventos sopram no mundo inteiro, e na própria Europa não são raros os Presidentes e até os Reis que obedecem à mesma influência. Insistimos: não fazemos aqui um comentário sobre um homem e muito menos sobre um país, mas sobre uma ideologia e uma época.

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Assim sopram os ventos. E para onde sopram eles? Virá dia em que os Chefes de Estado recearão apresentar-se como burgueses, e preferirão o blusão proletário de Stalin? E em que os diplomatas adotarão as maneiras "fortes" de Ana Pauker?

(Plinio Corrêa de Oliveira, Catolicismo nº 4, Abril de 1951)

Dois modos de ver a vida do campo


Seis horas da tarde. A faina diária está terminada. A nobre tranqüilidade da atmosfera envolve a vastidão dos campos, convidando para o repouso e o recolhimento. Um crepúsculo cor de ouro transfigura a natureza, fazendo brilhar em todas as coisas um reflexo longínquo e suave da inexprimível majestade de Deus. Ouve-se o tilintar do Ângelus, amortecido pela distância. É a voz cristalina e material da Igreja, que convida para a oração. Rezam os camponeses. São dois jovens cujo físico manifesta a um tempo saúde e hábito já antigo de trabalho manual. Seus trajes são rústicos. Mas em todo o seu ser transparece a pureza, a elevação, a natural delicadeza de almas profundamente cristãs. Sua condição social modesta é como que transfigurada e iluminada por sua piedade, que incute respeito e simpatia. Em suas almas refulgem os raios dourados do sol, mas de um sol muito mais alto por todos os títulos: a graça de Deus.

Verdadeiramente, sua beleza de alma é o centro do quadro, o ponto mais alto da emoção estética. É linda a natureza, mas ela não serve senão de ambiente paro a manifestação da beleza dessas almas reunidas pelo Filho de Deus.

Nada nestes camponeses indica desassossego ou mal-estar. Eles são inteiramente conformes a seu meio, a sua profissão, a sua classe. Que outra dignidade, que outra ventura poderia desejar este casal?

Millet (Jean-François Millet - 1857-1859) reuniu admiravelmente em sua tela ( L'Angélus - Musée d'Orsay - Paris ), os elementos necessários para que se compreenda a dignidade do trabalho manual na atmosfera plácida e feliz da verdadeira virtude cristã.

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Nem todos os momentos da vida do campo são assim. Millet apanhou, no que chamaríamos um instantâneo feliz, um momento culminante de beleza material e moral. Mas seu quadro tem o mérito de ensinar os homens a ver, dispersos na rotina da existência rural quotidiana, os lampejos genuínos e freqüentes desta fisionomia cristã das almas e das coisas num ambiente verdadeiramente vivificado pela Santa Igreja.

A atitude de espírito de Millet, que ele comunica a quem contempla sua obra prima, está toda voltada para Deus, e para os reflexos de beleza espiritual e material que Ele projeta na Criação.

Numa crítica psicológica do quadro, para ser exato, deveria deplorar apenas algum excesso de sentimentalismo.

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Poder-se-ia fazer o mesmo elogio do quadro de Yves Alix(1890-1969), também inspirado na vida dos campos, "Le Maitre des moissons"?

O autor não percebeu, não sentiu, não aceitou em sua visão do trabalho agrícola nada daquilo por onde ele se torna digno de ser praticado por um filho de Deus.

Neste quadro, não foi o espírito que dominou a matéria e a enobreceu; foi a matéria que penetrou o espírito e o degradou. Nos corpos, o trabalho material imprimiu uma brutalidade por assim dizer facinorosa. As fisionomias exalam um estado de espírito que lembra o botequim e o campo de concentração. Se os personagens do segundo plano não parecessem de tal maneira endurecidos, se fossem capazes de chorar, suas lágrimas seriam de fel; se fossem capazes de gemer, seus gemidos seriam como o ranger de engrenagens. A tristeza, a maldade, a cacofonia das cores, das formas e das almas se exala pela voz do personagem do primeiro plano. Não se sabe bem o que exclama, se uma ameaço ou uma blasfêmia.

Yves Alix reuniu e exagerou e deformou até o delírio os aspectos por ande o trabalho é uma expiação e um sofrimento, e a terra um exílio; exprimiu com uma fidelidade meticulosa - e como que entusiasmada! - o que na alma humana há de mais atroz e mais baixo, para apresentar o conjunto como aspecto real e normal da vida quotidiana, espiritual e profissional do trabalhador.

E por isto, enquanto da obra prima de Millet se evola uma prece, do pesadelo de Yves Alix se desprende um bafo de revolução.

Se Deus permitisse aos anjos embelezar a terra e a vida, eles o fariam no sentido de tornar mais freqüentes, mais duráveis, mais belos os aspectos que Millet procurou observar e reunir. Se Ele permitisse aos demônios desfigurar os homens e a criação, estes formariam, na alma e no corpo, e nos aspectos das coisas, personagens e ambientes como os do quadro de Yves Alix.

(Plinio Corrêa de Oliveira, Dois modos de ver a vida do campo, Catolicismo nº9, Setembro de 1951)

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Têm os símbolos, a pompa e a riqueza uma função na vida humana?

Chegou o momento de dizer algo sobre as críticas feitas por Lord Altrincham e parte da imprensa britânica à Rainha Elizabeth.

Em resumo, Lord Altrincham e seus sequazes atacaram Elizabeth II por julgar que sua apresentação, seu modo de ser, o tônus aristocrático da corte inglesa são incompatíveis com a idéia que nosso século igualitário faz de uma Rainha.

O que pensar disto?

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Que a crítica de Lord Altrincham é espantosamente superficial, ou fundamentalmente insincera. Pois se nosso século é tão igualitário que as mais belas tradições do passado monárquico e aristocrático não podem sobreviver, então também a própria monarquia não tem mais razão de existir. O que Altrincham pediu foi, no fundo, a transformação da monarquia em instituição pequeno-burguesa. Ele quereria Elizabeth II vestida, não como Rainha da Inglaterra, mas como rainha de beleza de arrabalde, capaz de figurar sem demasiada dissonância ao lado de Kruchev e Bulganin nas cerimônias oficiais. Se ele não o percebeu, foi superficial. Se o percebeu, foi insincero quando formulou suas críticas como monarquista. Pois por sua boca falava um igualitarismo essencialmente antimonárquico.

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Sobre Altrincham, é quanto basta. Não merece que se perca mais tempo com ele.

Vamos ao mérito da questão. É verdade que o cerimonial monárquico inglês é anacrônico e deve ser plebeizado?

A pergunta está mal formulada. Importa agir, não segundo os caprichos deste ou daquele século, mas segundo a ordem posta por Deus na criação.

Quis a Providência que houvesse na natureza os materiais belos e preciosos com os quais o engenho humano, retamente movido por um anelo de beleza e perfeição, produz as jóias, os veludos, as sedas, tudo enfim que serve para o ornamento do homem e da vida.

Imaginar uma ordem de coisas - qualquer que seja a forma de governo, aliás - em que tudo isto fosse proscrito como mau, seria rejeitar dons preciosos concedidos para a perfeição moral da humanidade.

De outro lado, Deus deu ao homem a possibilidade de exprimir por gestos, ritos, formas protocolares, a alta noção que tem de sua própria nobreza, ou da sublimidade das funções de governo espiritual ou temporal que por vezes é chamado a exercer. Daí, além do luxo, a pompa como elemento natural da vida de um povo culto.

Esses recursos decorativos foram feitos para adornar a tradição, o poder legítimo, os valores sociais autênticos, e não para serem o privilégio de arrivistas e nouveaux-riches que estadeiam sua opulência — para o que nada os preparou — em boates, cassinos, ou hotéis suntuosos. E muito menos para serem trancados nos museus como incompatíveis com a simplicidade funcional e a sisudez lúgubre de um ambiente mais ou menos sovietizado.

Assim entendidos, esses elementos decorativos têm essencialmente uma admirável função cultural, didática e prática, da maior importância para o bem comum.

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Num balcão, a Rainha, o Duque de Edimburgo e seus dois filhos se apresentam aos aplausos da multidão. Séculos de gosto, finura, poder e riqueza prepararam pacientemente essas jóias magníficas, essa indumentária nobre, essa perfeita estilização de atitudes e expressões fisionômicas.

Considerando as conveniências do corpo, é bem possível que a Rainha achasse mais cômodo nessa hora estar de peignoir e chinelos fazendo tricot, o Duque preferisse estar numa piscina, e as crianças rolando num gramado. Mas eles compreendem que essas coisas só se fazem em particular. Elas podem ser boas, por exemplo, para um pastor fazê-las diante de seu rebanho de irracionais; não porém para um chefe de Estado se impor ao respeito de um povo inteligente. A animais se tange fazendo uso de um bordão e dando capim. Para homens, são necessárias convicções, princípios, e em conseqüência símbolos em que tudo isto se exprima.

Quando a Família Real assoma assim ao balcão, ela simboliza a doutrina da origem divina do poder, a grandeza de sua nação, o valor da inteligência, do gosto, da cultura inglesa. As multidões aplaudem. Do mundo inteiro, vêm pessoas desejosas de contemplar esta manifestação de grandeza da Inglaterra. E, ao terminar, todos se dispersam dizendo: "que grande instituição, que grande cultura, que grande país".

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Aqui está, em nosso segundo clichê, Elizabeth em trajes comuns. Imagine-se que doravante ela só se apresentasse assim ao povo. Quem viria para vê-la? E, vendo-a, quem pensaria na glória da Inglaterra?

Dos poucos que acorressem para a ver, a quase totalidade pensaria: que moça simpática. A alta finura, a distinção tão autêntica da Rainha, velada pela banalidade dos trajes hodiernos, muitos não a notariam. E como de moças simpáticas estão cheias as ruas, praças, cinemas, ônibus e metrôs, a coisa ficaria nisso.

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Admirável, legítimo, profundo poder dos símbolos! Só o nega quem não tem inteligência para compreendê-lo. Ou quem quer destruir as altas realidades que estes símbolos exprimem. E ai do país em que — qualquer que seja a forma de governo, repetimos — a opinião pública se deixa transviar por demagogos vulgares, endeusando a trivialidade e simpatizando só com o que é banal, inexpressivo, comum.

(Plinio Corrêa de Oliveira, Catolicismo, Nº 82, Outubro de 1957)

Miniatura de Rei, e protótipo de servo

Uma situação modesta. Trata-se de um soldado, veterano de guerra, do exército inglês.

Mas esta situação modesta tem suas glórias. O mérito de uma existência inteira transcorrida no serviço da pátria, e num serviço que tem a peculiaridade de ser luta. Luta cheia de riscos, que comportam o sacrifício da saúde e até da vida.

Todas estas glórias se refletem no traje, modelado por uma longa tradição para ser o símbolo dos altos valores morais que uma carreira militar, ainda que modesta, contém em si.

As medalhas lembram serviços, e perigos enfrentados em prol da Inglaterra. Os galões indicam uma graduação que, se bem que inferior merece ser assinalada. O tecido excelente da farda, seus belos botões, seu corte distinto exprimem quanto a sociedade reconhece e admira esta modesta situação. O tricórnio solene e elegante acentua esta impressão. Assim apresentado, o personagem se sente digno, calmo e feliz. Seu olhar e seu porte exprimem o hábito em que está, de ser respeitado. A fisionomia tem algo de sobranceiro, que a venerabilidade da barba alva ainda marca mais. A considerar o rosto, pensa-se vagamente em Jorge V. E de fato este modesto militar é, no fundo, uma minúscula imagem do Rei.

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Um chefe de Estado, déspota temido e incontrastável de todas as Rússias. Cabelo desgrenhado, bigodeira vulgar, face grosseira e brutal, gesto impetuoso e violento, traje carente de qualquer elevação ou distinção. Nada o diferencia de um servo, de um desses servos que modelaram sua alma na freqüentação dos botequins, e são botequineiros em todas as camadas mentais ou físicas seu ser.

Nada, nele, indica qualquer coisa de elevado, nada exprime a grandeza e a dignidade do poder supremo. Ou, mais simplesmente, a grandeza e a dignidade de um homem correto.

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Modesto soldado, elevado a uma situação que é a miniatura de um Rei: beneficiário feliz de uma civilização que foi outrora católica, e em cuja alma está o instinto de tudo elevar e engrandecer.

Poderoso ditador, rebaixado, como apresentação e como pessoa, ao nível do último servidor: símbolo de uma ordem de coisas satânica, que por adoração à igualdade tem por instinto rebaixar e degradar tudo!

(Plinio Corrêa de Oliveira, Catolicismo, Nº 76, Abril de 1957)

Princípio da gradualidade, regra ardilosa do progresso do mal

Desejamos hoje pôr em evidência um dos princípios mais essenciais do triste roteiro seguido pelo Ocidente, partindo de suas tradições culturais e sociais cristãs, para o paganismo total, do qual já se acha tão próximo.

Trata-se do princípio que chamaríamos da "gradualidade". A corrupção, em sua longa marcha vitoriosa não fez saltos. Pelo contrário, soube progredir por etapas tão insensíveis que ninguém, ao longo da trajetória, prestava atenção ao deslizar das idéias, dos costumes e das modas. E com isto o caminho percorrido docilmente pela humanidade foi imenso...

A maior parte dos costumes lamentáveis de nossos dias apareceu timidamente no século XIX. Publicaremos oportunamente a descrição dos primeiros banhos de mar a que começou a se afeiçoar a alta sociedade francesa ainda antes da revolução de 1830, acompanhando-a do material ilustrativo competente. O termo de comparação, que seria o maillot de banho absolutamente moderno, não o poderemos publicar, pois já "evoluiu" tanto que macularia as páginas de um jornal católico. Quem tivesse dito às nobres e discretas damas que em plagas francesas iniciaram a moda, como se banhariam as elegantes de 1920 por certo lhes teria causado muita surpresa. E talvez, para evitar tais excessos, tivessem elas, até, suspendido o costume ainda incipiente. E o que diriam por sua vez em 1920 as elegantes, se pudessem ver como elas próprias ou suas filhas e netas tomariam banhos de mar e de piscina em 1956? Provavelmente, esta antevisão teria suscitado nelas uma reação salutar. Mas, como ninguém previa tais excessos, a moda continuou seu curso. Em 1956, é-nos lícito perguntar: como estarão as coisas em 1986?

Nenhum princípio nos parece mais importante de difundir, do que este da gradualidade das transformações da moda, se queremos despertar uma reação que já tarda...

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Hoje trataremos mais especificamente da masculinização da mulher, fenômeno absolutamente tão deplorável e ridículo quanto seria a efeminação do homem.


Nossa primeira gravura representa duas senhoras, muito jovens, e uma menina, em um interior confortável de há cerca de cem anos atrás. O ambiente em que se movem é caracterizado por uma certa gravidade.

As cortinas são espessas, a cadeira é grande e nobre, o cachepot de linhas distintas e robustas tem apuradas decorações, um belo tapete cobre todo o chão. Mas ao mesmo tempo os coloridos são alegres. As cortinas são de um verde muito claro, quase verde esmeralda, a senhora sentada, que é evidentemente uma visitante, traja um belo vestido de um verde musgo do outono europeu, e seu casaco tem borda de pele castanha. À cabeça, traz algumas flores. A senhora de pé veste-se de seda dourada brilhante. A menina tem um vestido azul, ornado com belas pregas. São dessa mesma cor as fitas que lhe ornam o cabelo e lhe pendem das tranças. Este misto de gravidade e graça caracterizava bem o ambiente da vida de família de outrora. Nele, a mulher podia expandir em toda sua amplitude, as preciosas qualidades típicas de seu sexo, a doçura, a afabilidade, a graça, a bondade e a distinção. As fisionomias das três pessoas em nosso clichê estão distendidas, plácidas, e impregnadas de afetividade, indicando um convívio marcado a fundo pelo que tem de mais suave a delicadeza feminina. Elas parecem encontrar-se como no elemento próprio para a prática natural e como que instintiva dos deveres cristãos da esposa, da mãe e da filha.

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Mas pouco depois a masculinização começava, timidamente, embora. Nas duas jovens do segundo clichê, há um começo de audácia, de dureza, de atrevimento, que contrasta com o quadro anterior. Tem-se a impressão de que algo de muito profundo -se bem que ainda muito discreto - se desajustou dentro delas, relativamente à vida do lar. Esta lhes parece um tanto insípida. Há um gosto manifesto de viver na rua, enfrentando imprevistos, passando por peripécias, levando enfim uma vida que já não é inteiramente voltada para os prazeres castos da família, e em cujo teor os momentos mais agradáveis são os que se empregam passeando como anônimos na multidão. Um que de masculino nos chapéus, no corte dos vestidos, e sobretudo na fisionomia dos personagens o diz bem.


Uma jovem moderna, num ambiente moderno. Não tivesse compridos os cabelos, e não seria fácil dizer-se-lhe à primeira vista o sexo. Ela respira por todos os poros o gosto da aventura, da luta dentro de uma vida que em nada se diferencia da de um homem, e que exige o cultivo de qualidades tipicamente masculinas. Um pouco mais, e a masculinização terá sido levada tão longe quanto possível.

Mas, dirá alguém, que mal há nisto?

É fácil responder. O mesmo mal que haveria em que os homens de hoje se penteassem, se vestissem e vivessem como as damas de nosso primeiro clichê.

Pura e simplesmente uma monstruosa subversão da ordem natural.

(Plinio Corrêa de Oliveira, Catolicismo Nº 68, Agosto de 1956)

Depósito de livros? Ou também símbolo da dignidade do espírito?

Há dois modos de se conceber uma biblioteca. Um atende só ao aspecto material. Os livros, revistas, documentos, estantes, fichários e mesas devem ser conservados com segurança contra a umidade, os incêndios, as traças, os ladrões, etc. De outro lado, documentos, revistas e livros devem ser guardados de maneira a se encontrarem facilmente. Um edifício destinado a biblioteca, concebido "funcionalmente", deve pois corresponder a esse objetivo e não deve ir além desse fim prático.


Para realçar tal noção pode-se dar ao prédio, por exemplo, uma estrutura composta de quatro corpos sucessivamente mais altos, que sugerem a idéia de conjunto de uma imensa cômoda de linhas elementares, formada por quatro partes de tamanhos diversos, destinadas a guardar respectivamente e sem confusão objetos distintos por sua natureza. E, como nos móveis do gênero, podem-se colocar escaninhos por todo lado: são no prédio as janelas. Uma forte desproporção entre as partes da "cômoda" é o tributo pago à extravagância do século.

Está descrito assim, sumariamente, o edifício da Biblioteca Municipal de São Paulo.

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Admita-se, para efeito de argumentação, que esteja por essa forma atendido tudo quanto diga respeito ao livro, à revista, ao documento, ao fichário. E o homem? Melhor: e o leitor?

Entra aí a outra maneira de ver o edifício ideal para uma biblioteca. Concedido tudo quanto é necessário aos objetivos práticos, é preciso entretanto levantar as vistas mais alto. O prédio deve exprimir o aspecto fundamentalmente nobre do mister de ler e de estudar. Ele deve estar em relação com a hierarquia de valores que coloca, em certo sentido, o pensamento no ápice das atividades humanas, precedido apenas pela oração. E por isto deve o edifício ter, quanto possível, uma magnificência régia.

É a esta concepção que corresponde a biblioteca de Coimbra, construída na primeira metade do século XVIII.


Os livros, esplendidamente encadernados, estão dispostos em imensas e sólidas estantes, todas numeradas, onde podem ser facilmente classificados e encontrados. Com os recursos da época, era o que podia haver de "funcional". Mas por outro lado a suntuosidade da decoração tem algo de palácio e algo de igreja. O quadro do Rei de Portugal, D. João V, ao centro, ao mesmo tempo que presta homenagem ao monarca a quem se deve o prédio, põe em relevo quanta consideração tem aos estudiosos aquele que constitui o mais alto degrau na hierarquia política e social.

O edifício não atende só a um objetivo material, isto é, guardar papéis, pergaminhos, estantes, etc., mas também a um objetivo espiritual: realçar aos olhos de todos o prestígio do intelectual, tanto na ordem natural das coisas, quanto, conseqüentemente, na hierarquia de valores da sociedade temporal.

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Talvez objetasse alguém que a Biblioteca Municipal de São Paulo tem uma grandeza monumental que de algum modo constitui homenagem à intrínseca nobreza da vida intelectual.

A objeção não colhe. A nobreza não é um valor estritamente funcional, e não pode, pois, exprimir-se inteira e adequadamente, nem em termos de funcionalidade, nem em termos de tamanho. A nua e mera funcionalidade convém talvez às edificações de caráter industrial, em que a obtenção do produto preside a toda a concepção arquitetônica. Não, porém, a edifícios destinados a atender finalidades que, tendo embora algo de prático, transcendem entretanto do mero domínio da prática. No que diz respeito à quantidade, nela não se exprime tão adequadamente a nobreza, quanto na qualidade.

(Plinio Corrêa de Oliveira, Catolicismo nº 119, Novembro de 1960)

A verdadeira glória só nasce da dor


Ao longe, uma multidão assiste – com o habitual enlevo, é natural – a um desfile dos granadeiros da Rainha em seu uniforme de gala.

De há muito, a tática militar tornou inúteis fardamentos como este: calças pretas, dólmãs vermelhos com cinturão e ornatos brancos, luvas brancas, grande gorro de pele. Mas ele se conserva para efeitos morais: manter a tradição do exército e fazer sentir ao povo o esplendor a vida militar.

A glória, com efeito, deve exprimir-se por símbolos. Deles se serve Deus para manifestar aos homens a sua própria grandeza. E nisto, como no mais, devemos imitar a Deus. Ora, o uniforme dos granadeiros, sua marcha impecavelmente cadenciada e alinhada, a ufania com que o porta-bandeira conduz o pendão nacional e o baliza indica o rumo da marcha, o rufar dos tambores e o toque dos clarins, tudo em uma palavra, exprime a beleza moral inerente à vida militar: elevação de sentimentos, abnegação até o sangue, força de empreender, arriscar e vencer, disciplina, gravidade, heroísmo enfim.

Há glória, e verdadeira glória, a brilhar em todo este ambiente.

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Mas, afinal, a glória é isto? Consiste em vestir um uniforme anacrônico, executar manobras que já não têm nenhuma correspondência real com a batalha moderna, tocar tambores e clarins, e pisar firme no chão para adquirir para si e dar aos outros a impressão de que se é herói? Em avançar "corajosamente" num campo sem obstáculos nem riscos, como quem vai de encontro a um inimigo que não está presente, e ganhar por prêmio os aplausos inebriantes da multidão? Isto é glória? Ou é teatro, representação, opereta?

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Temos em nosso segundo clichê a outra face da glória militar. Imerso inteiramente na tragédia da luta armada, este jovem soldado da guerra da Coréia parece não ter idade definida. Da mocidade tem ele a robustez. Mas o viço, o brilho, a louçania sumiram. Sua pele, curtida por dias intérminos de sol, noites inteiras de vento e tempestade, parece ter tomado uma consistência não muito diversa do couro. No traje, nem a mais leve preocupação de elegância: tudo está disposto para agasalhar contra a rudeza do clima e permitir movimentos desembaraçados e ágeis, na lama, no mato, na escarpa dos morros, sob a ação implacável dos bombardeios.

A luta, a resistência e o avanço são os objetivos a que tudo neste homem está ordenado. Sua fisionomia de há muito não é iluminada por um sorriso, seu olhar parece imobilizado na vigilância contínua contra os homens e os elementos.

Nele não há a preocupação dos grandes lances, nem dos gestos teatrais. Está voltado pra as mil trivialidades da vida cotidiana autêntica das guerras. Não quer ele representar para si ou para os outros um grande papel. Quer a vitória de uma grande causa. É o que explica sua seriedade, sua dignidade e sua força de resistência.

Ele todo está penetrado até as últimas fibras por um grande cansaço e uma grande dor. Mas um cansaço menor do que a inflexível resistência de alma e corpo que o supera e vence. Uma dor conscientemente sentida, e aceita até seus últimos limites e conseqüências, por amor à causa por que ele está lutando.

Esta é a face dolorosa e talvez trágica da vida militar. Nisto é que está o mérito, daí é que nasce a glória.

Uniformes vistosos, armas luzentes, marchas cadenciadas, desfiles aparatosos, clarins, tambores, aplausos sem fim de uma assistência inebriada, tudo isto são exterioridades legítimas, necessárias até, na medida em que exprimem um desejo de lutar e de se sacrificar pelo bem comum. Mas tudo isto não passaria de opereta, se esta coragem não fosse autêntica e provada, como o é, aliás, pelos granadeiros da Rainha Elizabeth.

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Considerações de ordem natural, é certo. Nelas podemos, porém, colher matéria para nos elevarmos a um campo mais alto.

A vida da Igreja e a vida espiritual de cada fiel são uma luta incessante. Deus dá por vezes à sua Esposa dias de uma grandeza esplêndida, visível, palpável. Ele dá às almas momentos de consolação interior ou exterior admiráveis.

Mas a verdadeira glória da Igreja e do fiel resulta do sofrimento e da luta.

Luta árida, sem beleza sensível, nem poesia definível. Luta em que se avança por vezes na noite do anonimato, na lama do desinteresse ou da incompreensão, sob as tempestades e o bombardeio desencadeado pelas forças conjugadas do demônio, do mundo e da carne. Mas luta que enche de admiração os Anjos do Céu e atrai as bênçãos de Deus.

(Plinio Corrêa de Oliveira, Catolicismo nº 78, Junho de 1957)

"Tudo se reflete nos olhos: cólera, medo, afeto ou alegria"

Temos tratado muitas vezes de ambientes enquanto criados por edifícios, móveis, paisagens, etc. Seria interessante acentuar que o elemento principal de todo ambiente é o próprio homem. Verdade evidente no que diz respeito às idéias que o homem externa, e aos atos que pratica, e menos evidente talvez no que poderíamos chamar os imponderáveis da presença humana: o porte, a atitude, o olhar.

Detenhamo-nos na análise do olhar humano.


Nosso primeiro clichê representa uma das personalidades mais insignes do movimento ultramontano francês no século passado, Dom Prospero Guéranger, O. S. B., fundador e Abade do famoso Mosteiro de Solesmes, restaurador da Sagrada Liturgia, escritor exímio, e grande amigo de Louis Veuillot.

A fronte larga, os traços acentuados e vigorosos, indicam inteligência e pujança de personalidade. Mas tudo quanto estes traços possam significar está resumido, condensado, e levado à sua mais alta potência de expressão nos olhos. Grandes olhos claros, cheios de luz, nos quais parece nunca se ter espelhado qualquer fraqueza ou qualquer baixeza humana. Grandes olhos que parecem feitos para a exclusiva consideração do que há de mais transcendental nesta vida e para os imensos horizontes do Céu. Mas ao mesmo tempo olhar de uma invencível força perfurante em relação às coisas da terra, capaz de transpor todas as aparências, todos os sofismas, todos os artifícios dos homens, mergulhando até o mais fundo recôndito dos acontecimentos e dos corações. Alma de varão justo e contemplativo, que vê alto e vê fundo, porque vive imersa nas claridades de um pensamento lógico, iluminado por uma fé impecavelmente ortodoxa.

Diante de tal olhar, como não pensar nas belas palavras do Santo Padre Pio XII em sua alocução de 12 de junho p.p. aos membros do 1º Congresso Latino de Oftalmologia: "Tudo se reflete nos olhos: não só o mundo visível, mas também as paixões da alma. Mesmo um observador superficial descobre neles os mais variados sentimentos: cólera, medo, ódio, afeto, alegria, confiança ou serenidade. O jogo dos diversos músculos do rosto encontra-se de algum modo concentrado e resumido nos olhos, como num espelho".

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Dos grandes olhos que Dom Guéranger mantinha tão abertos para Céu e para esta vida, passemos para a admirável expressão de olhos que a morte cerrou, e que só se reabrirão "in novissimo die", para contemplar os terríveis esplendores do Juízo Universal.

Trata-se da admirável máscara funerária de S. Felipe Néri, o famoso apóstolo de Roma no séc. XVI. Tal foi o vigor de sua personalidade, que sua máscara mortuária por assim dizer ainda reluz de finura, de força, de uma ligeira e suave ironia que parece prestes a entreabrir os lábios num imperceptível sorriso; mas o "olhar" ainda é a nota mais expressiva, com uma fixidez, uma lucidez, uma força que transpõe não só as pálpebras mas os véus da morte e do tempo, deixando ver até o fundo a coerência, a robustez, a sanidade da alma que já se foi. Força, harmonia, lógica de Santo que mereceu ver no Céu a luz diáfana de Deus.

(Plinio Corrêa de Oliveira, Catolicismo nº 45, Setembro de 1954)

O Maravilhoso, o real e o horrendo na literatura infantil

As histórias, todos o sabem, são os primeiros contatos das crianças com a vida. Através delas a inteligência infantil transpõe os limites do ambiente doméstico, e aprende as noções iniciais sobre a sociedade humana, com as inúmeras diferenciações que comporta, as atrações que oferece, os deveres que impõe, as decepções que traz, e o jogo complicado das paixões nos altos e baixos desta grande luta que é a existência. "Militia est vita hominis super terram", diz a Sagrada Escritura (Job 7,1). "Militia", sim, em que uns lutam por seus interesses pessoais, legítimos e ilegítimos, e outros lutam contra o mundo, contra o demônio, contra a carne, para a maior glória de Deus. As primeiras noções sobre esta "militia", as impressões mais fundas que o homem recebe relativamente aos aspectos essenciais dessa luta e à sua posição perante ela, recebe-as nos seus primeiros anos.

Daí haver importância essencial, para uma civilização católica, em proporcionar às crianças uma literatura profundamente e sadiamente religiosa. Não falamos apenas do curso de Catecismo e História Sagrada, que deve ser o centro de tudo, mas de histórias que fossem como que o comentário, o prolongamento, a aplicação do que a Religião ensina.

Isto é, em termos de boa doutrina, o normal. Quanto é evidente, porém, que a caudal da literatura infantil moderna está longe disto!

Nesta caudal inteiramente leiga - e só por isto má - há ainda distinções a fazer. Pois de há muito tempo o laicismo não é o único mal da literatura infantil de nossos dias.

Quando falamos da literatura infantil, incluímos evidentemente nesta designação genérica as ilustrações que ela comporta legitimamente, e de que se faz um uso muitas vezes exagerado.

Desejando tratar hoje da literatura infantil nesta secção, que não é de crítica literária, fazêmo-lo analisando algumas dessas ilustrações.


Antes de tudo, uma composição de Walt Disney. É a Cinderela que vai com seu Príncipe rumo ao castelo encantado. É o maravilhoso na literatura infantil.

Haveria restrições a fazer. Em princípio, o que se oferece à criança deve tender a amadurecê-la, sob pena de não ser inteiramente são. Ora, nesta composição há certas simplicidades, deliciosas para olhos de adultos como interpretação delicada da fantasia infantil, mas não ajudam essa maturação. Alguma coisa no cocheiro, no lacaio, na estrutura do morro e dos edifícios dá idéia de coisa feita, não só para crianças, mas por crianças. E isto se nota, embora menos claramente, nos outros elementos da cena.

Mas, feita esta reserva, como não elogiar o gosto, a delicadeza, a variedade, desta composição? O maravilhoso, indispensável nos horizontes infantis como meio de apurar o senso artístico, elevar o espírito, abrir o descortínio, estimular sadiamente a imaginação, está aqui expresso com um tato e um gosto notáveis.

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Passamos agora do maravilhoso para uma representação da vida quotidiana, com seus aspectos calmos, caseiros, simpáticos: outro elemento essencial nos horizontes da literatura infantil, para despertar a atração, o interesse, pela realidade e pela virtude.

Aqui está uma conhecida ilustração do Juca e Chico. No alto do telhado, os dois meninos das "sete travessuras" estão "pescando" as galinhas da Viúva Chaves.

Junto ao fogão, ladra assustado o fiel cãozinho. Em baixo, a viúva, entregue a afazeres domésticos, nada percebe. Os "dois meninos malcriados, estes dois endiabrados" que "põem toda a gente maluca", representam com real expressão a traquinagem tão freqüente na vida caseira. Traquinagem tratada, aliás, no livro não sem uma exemplar severidade: "lede esta história e vereis a sorte dos dois". Exceção feita dos traquinas - e talvez nem isto - tudo evoca a atmosfera feliz, calma, modicamente farta, da vida doméstica popular. Louçania de alma, temperança, largueza, bem estar sensato na própria mediania, tudo aí se exprime.

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Vem depois a literatura malfazeja.

Apresentamos um exemplo entre mil. Murros, tiros, assaltos, agressões, vibração exagerada, narração melodramática, corre-corre, sangue, morte, "super-homens" que voam, que transpõem muralhas, que manipulam raios: toda uma sinistra e ridícula contextura de inverossimilhanças, de crueldades, de grosseiros artifícios de sensacionalismo. E isto não é uma história só: é todo um gênero "literário" que enche páginas inteiras de revistas, revistas inteiras avidamente seguidas pelas crianças.

Que horizontes assim se abrem para a infância? Os do crime. Que prazeres? Os da excitação nervosa tendente em certos casos quase ao delírio. Que ideais? Os da força bruta, e da vida de aventura sem eira nem beira.

Com isso não se forma um homem, e muito menos um cristão. O produto próprio desta literatura é o neobárbaro...

(Plinio Corrêa de Oliveira, Catolicismo nº 40 - Abril de 1954)

A verdadeira santidade é força de alma e não moleza sentimental


A Igreja ensina que a verdadeira e plena santidade é o heroísmo da virtude. A honra dos altares não é concedida às almas hipersensíveis, fracas, que fogem dos pensamentos profundos, do sofrimento pungente, da luta, da Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo enfim. Lembrada da palavra de seu Divino Fundador, "o Reino dos Céus é dos violentos", a Igreja só canoniza os que em vida combateram autenticamente o bom combate, arrancando o próprio olho ou cortando o próprio pé quando causava escândalo, e sacrificando tudo para seguir tão somente a Nosso Senhor Jesus Cristo. Na realidade, a santificação implica no maior dos heroísmos, pois supõe não só a resolução firme e séria de sacrificar a vida se preciso for, para conservar a fidelidade a Jesus Cristo, mas ainda a de viver na terra uma existência prolongada, se tal aprouver a Deus, renunciando a todo o momento ao que se tem de mais caro, para se apegar tão somente à vontade divina.

Certa iconografia infelizmente muito em uso, apresenta os Santos sob aspecto bem diverso: criaturas moles, sentimentais, sem personalidade nem força de caráter, incapazes de idéias sérias, sólidas, coerentes, almas levadas apenas por suas emoções, e, pois, totalmente inadequadas para as grandes lutas que a vida terrena traz sempre consigo.

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A figura de Santa Terezinha do Menino Jesus foi especialmente deformada pela má iconografia. Rosas, sorrisos, sentimentalismo inconsistente, vida suave, despreocupada, ossos de açúcar cândi e sangue de mel, eis a idéia que nos dão da grande, da incomparável Santinha.

Como tudo isto difere do espírito vasto e profundo como o firmamento, rutilante e ardente como o sol, e entretanto tão humilde, tão filial, com que se toma contacto quando se lê a "Histoire d'une Âme".



Nossos dois clichês apresentam por assim dizer duas "Terezinhas" diversas e até opostas uma à outra. A primeira nada tem de heróico: é a Terezinha insignificante, superficial, almiscarada, da iconografia romântica e sentimental.

A segunda é a Terezinha autêntica, fotografada a 7 de Junho de 1897, pouco antes de sua morte, que ocorreu a 30 de Setembro do mesmo ano. A fisionomia está marcada pela paz profunda das grandes e irrevogáveis renúncias. Os traços têm uma nitidez, uma força, uma harmonia que só as almas de uma lógica de ferro possuem. O olhar fala de dores tremendas, experimentadas no que a alma tem de mais recôndito, mas ao mesmo tempo deixa ver o fogo, o alento de um coração heróico, resolvido a ir por diante custe o que custar.

Contemplando esta fisionomia forte e profunda, como só a graça de Deus pode tornar a alma humana, pensa-se em outra Face: a do Santo Sudário de Turim, que nenhum homem poderia imaginar, e talvez nenhum ouse descrever. Entre a Face do Senhor Morto, que é de uma paz, uma força, uma profundidade e uma dor que as palavras humanas não conseguem exprimir, e a face de Santa Terezinha, há uma semelhança imponderável mas imensamente real. E o que há de estranhável em que a Santa Face tenha impresso algo de Si no rosto e na alma daquela que em religião se chamou precisamente Tereza do Menino Jesus e da Sagrada Face?

(Plinio Corrêa de Oliveira, Catolicismo nº 30, Junho de 1953)

Pintando a alma humana


Uma tendência muito freqüente nos artistas cuja produção possa ser reputada tipicamente "século XX" consiste na deformação do homem. Fugindo de copiar a realidade com as formas em que as vê habitualmente o olho humano, representam-na com alterações destinadas a lhes manifestar o aspecto mais profundo. Tomado em tese, este processo nada tem de mau. Entretanto, chama a atenção que, quando alteram os aspetos correntes da realidade, muitos artistas, dos mais tipicamente modernos, de fato deformam a realidade quase até a hediondez. Assim nos quadros modernos, não é difícil encontrar figuras humanas perfeitamente cômicas: cabeça minúscula, ombros pouco mais largos do que a cabeça, cintura muito mais larga do que a cabeça, cintura muito mais larga do que os ombros, pernas que parecem ir crescendo até o tornozelo no qual se entroncam pés literalmente imensos. Em certas esculturas, os pescoços não são apenas grossíssimos, mas deformados, apresentando num ou outro ponto bócios alarmantes. Em suma, se algum mágico aparecesse a qualquer homem normalmente sensato, e lhe oferecesse um líquido para transformar sua fisionomia e seu corpo no de uma figura-tipo da arte moderna, tal oferecimento seria seguido de uma imediata e enérgica recusa... Esta obsessão do disforme, do feio, até mesmo do hediondo, chegou em certas produções artísticas aos limites do inconcebível. Veja-se por exemplo o quadro intitulado "Nossa Imagem" (David Alfaro Siqueiros, "Nuestra imagen actual", 1947. Col. Museo de Arte Moderno, INBA, México), que aqui publicamos. É a figura moral do gênero humano, como a quis apresentar um artista tipicamente ultramoderno.

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Que haja no universo disformidades físicas e morais terríveis, e que seja lícito ao artista representá-las sempre que daí não decorra ofensa aos bons costumes, ninguém o contesta. Entretanto, pintar só o horror, não pintar nem esculpir senão para deformar, como se o universo não fosse senão um receptáculo de ignomínias, eis o que revela um estado de espírito errado, e uma concepção indiscutivelmente falsa e perigosa, quer dos homens, quer do mundo. Esta tendência para o hediondo tem em sua raiz uma visão desesperada e blasfema da criação, que é obra de Deus. As pinturas ou esculturas feitas à influência desta visão deformam a alma; e os ambientes impregnados deste estado de espírito só podem degradar o homem, extinguindo nele todos os surtos de inteligência e de vontade para um ideal verdadeiramente nobre, puro e elevado.


A título de contraste, apresentamos aqui, tirado a esmo da imensa produção artística dos séculos passados, um quadro que representa um homem na sua maturidade. E muito mais do que o físico deste homem, seu estado de espírito, seu feitio moral. É Richelieu, pintado por Philippe de Champaigne em três atitudes diferentes. Todas as qualidades - e também todos os defeitos - do grande estadista se refletem neste admirável estudo, em que a alma humana pôde ser retratada no que tem de mais íntimo, vivo e sutil, sem que o artista precisasse recorrer, para isto, a deformações que degradam a própria natureza humana.

(Plinio Corrêa de Oliveira, Catolicismo nº 5, Maio de 1951)