sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Três faces da Revolução

Como sucessivas vezes temos exposto em "Catolicismo", a explosão protestante do século XVI, a Revolução Francesa, a Revolução comunista constituem como que as três fases de um imenso movimento, uno pelo espírito, pelos objetivos e até pelos métodos.

Na figura de três de seus chefes, a secção "Ambientes, Costumes, Civilizações" procura fazer ver hoje alguns dos traços de alma desse movimento, isto é, algo do espírito da Revolução.

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No retrato de Lutero morto (quadro de Lucas Fortnagel, Biblioteca da Universidade de Leipzig), uma análise detida revela, na grosseria dos traços, a nota característica do demagogo cheio de si, do arruaceiro cuja pregação tantos erros e tanta revolta espalhou, e tanto sangue fez verter. Mas a impressão que salta desde logo aos olhos, e se torna definitiva no espírito do observador, é a sensualidade, o amor exagerado aos regalos de toda ordem, que provoca já no primeiro olhar uma sensação confrangedora.

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Em Robespierre, cuja máscara mortuária conservada no Museu Tussaud aqui reproduzimos, o que se exprime principalmente é o ódio. Um ódio tão profundo, tão avassalador, que, sem ter abolido a sensualidade, constitui a nota dominante da fisionomia. Esses lábios cerrados para sempre parecem entretanto ainda destilar algo das pregações de violência e de morte da era do Terror. Esses olhos que já não vêem parecem conservar uma expressão de ódio viperino. A fronte abaulada dá a sensação de ainda ruminar peças oratórias incendiárias e planos de subversão. Ele todo não é senão ódio igualitário, tanto no plano especulativo como no militante, desejo imenso de destruir tudo quanto, a qualquer título, lhe é superior.

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O terceiro clichê apresenta Ernesto "Che" Guevara, o argentino transplantado para Cuba, que exprime tão autenticamente o cunho marxista da revolução cubana. Os cabelos, que parecem não ser de há muito nem cortados nem lavados, um bigode ralo e esfiapado cujas extremidades acabam por se unir a uma barbicha de contornos incertos, formando tudo para o rosto uma só moldura de desalinho e desordem, causam repulsa instintiva, mas visam despertar uma impressão de naturalidade e despretensão, levada ao extremo. De sua parte, o olhar, de uma luminosidade incomum, e o sorriso procuram dar uma certa idéia de bonomia e afabilidade um pouco mística. Este homem dulçuroso é um dos suportes do regime do "paredón" onde tantas vítimas têm sido cruelmente imoladas. Do regime que está movendo contra a Igreja uma perseguição inteiramente do estilo de Robespierre ou de Lenine.

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Se a fisionomia de Lutero exprime sobretudo a avidez dos prazeres do corpo, e a de Robespierre sobretudo o ódio igualitário, a de "Che" Guevara representa uma das máscaras mais recentes da Revolução, isto é, a bonomia insincera, a velar a pior das violências.

(Plinio Corrêa de Oliveira, Catolicismo nº 121, Janeiro de 1961)

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Um edifício de coerência a serviço da Fé


O primeiro aspecto que chama atenção na escultura do homem que figura nesta foto (*) é o modo de estar de pé. Tal escultura pode bem representar o cruzado no apogeu da Idade Média. Ele apresenta um equilíbrio de corpo perfeito. Os pés não são pés chatos, como os de pato, com a precária firmeza deste. Não. É a estabilidade corporal do homem, na qual não falta uma certa nota de elegância, em que entra algo de espiritual. As pernas, o tronco, os braços, representam a solidez física perfeita de um homem que venceu a ação da gravidade.

Ele não cedeu em nada à preguiça. Mas também não está efervescente, não tem a mentalidade do homem de negócios, que fala em cinco telefones ao mesmo tempo... Mantém-se inteiramente tranqüilo, mas de uma tranqüilidade tal, que seu repouso se volta inteiro para a ação. E atuação que já é, de uma vez, a guerra. A mais absorvente de todas as atividades, aquela que se opõe mais diretamente à preguiça. Não é o trabalho, é a luta. Ele está numa posição em que a qualquer momento pode iniciar o combate. Está fazendo uma proclamação com os grandes braços abertos. É a proclamação perfeita de quem anuncia e ameaça.

Por outro lado, o cruzado permanece numa atitude contemplativa. Sua fisionomia indica que ele não está vendo o que se passa em torno de si. Está olhando dentro de si mesmo. E de dentro de si considera um ideal inteiramente superior, que lhe ilumina a alma: são os princípios a favor dos quais o homem é obrigado a combater.

Ele todo é um edifício de coerência, de metafísica, pronto para descarregar o golpe. Todas as razões do combate lhe estão presentes, tudo raciocinado, coerente, positivo. É um homem profundamente sério. Se acontecer qualquer coisa diante dele, sua visão será a da realidade inteira. Não irá exagerar, nem subestimar, nem torcer a realidade, nem mentir. Ele vê o que acontece e diz o que vê. É o varão sério por excelência.

(*) Cavaleiro do Credo, do famoso escultor Emmanuel Frémiet (1824-1910)

(Plinio Corrêa de Oliveira, excertos conferência, 22 de abril de 1967)

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Esplendor da concepção hierárquica e cristã da vida

A onda satânica do igualitarismo, que desde a revolução protestante do século XVI até a revolução comunista de nossos dias, vem atacando, caluniando, solapando, e fazendo definhar tudo quanto é ou simboliza hierarquia, apresenta toda desigualdade como uma injustiça. Está na natureza humana - dizem os igualitários - que o homem se sinta diminuído e vexado em curvar-se ante um superior. Se o faz, é porque certos preconceitos ou o império das circunstâncias econômicas o obrigam a tal. Mas esta violência à ordem natural das coisas não fica impune. O superior deforma sua alma pela prepotência e pela vaidade que o levam a exigir que alguém se curve ante ele. O inferior perde com seu gesto subserviente algo da elevação de personalidade própria ao homem livre e independente. Em outros termos, sempre que uma pessoa se curva ante outra, há um vencedor e um vencido, um déspota e um escravo.

A doutrina católica nos diz exatamente o contrário. Deus criou o universo segundo uma ordem hierárquica. E dispôs que a hierarquia fosse da essência de toda ordem verdadeiramente humana e católica.

Em contato com o superior, o inferior pode e deve tributar-lhe todo o respeito, sem o menor receio de se rebaixar ou degradar. O superior, por sua vez, não deve ser vaidoso, nem prepotente. Sua superioridade não decorre da força, mas de uma ordem de coisas muito santa, e desejada pelo Criador.

Na Igreja Católica, os costumes exprimem com admirável fidelidade esta doutrina. Em nenhum ambiente os ritos e as fórmulas de polidez consagram mais acentuadamente o princípio de hierarquia. E em nenhum, também, se vê tão claramente quanta nobreza pode haver na obediência, quanta elevação de alma e quanta bondade pode haver no exercício da autoridade e da preeminência.

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Numa Cartuxa espanhola, um monge oscula, genuflexo, o escapulário de seu superior. É a expressão da mais inteira sujeição.

Entretanto, considere-se atentamente a cena, e se verá quanta varonilidade, quanta força de personalidade, quanta sinceridade de convicção, quanta elevação de motivos o humilde monge genuflexo põe em seu gesto. Contém este qualquer coisa de santo e cavalheiresco, de grandioso e singelo, que faz pensar ao mento tempo na "Legende Dorée", na "Chanson de Roland", e nas "Fioretti" de São Francisco de Assis.

Como, genuflexo, este religioso humilde e desconhecido é maior do que o homem moderno, molécula enfatuada, impessoal, anônima e sem expressão, da grande massa amorfa em que se transformou a sociedade contemporânea.

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Depois da humildade do monge, consideremos a do gentil-homem.

O Conde Wladimir d’Ormesson foi até há bem pouco embaixador da França junto à Santa Sé. Em nosso clichê, vemo-lo, revestido do fardão solene de diplomata, ajoelhado ante o Santo Padre Pio XII por ocasião de uma audiência. Seria difícil imaginar uma atitude que exprimisse, tão completamente e ao mesmo tempo, uma alta consciência de sua própria dignidade e um vivo respeito ante a autoridade excelsa e suprema, em face da qual o embaixador tem a honra de se encontrar. O joelho em terra, mas o tronco e o pescoço eretos, a nobreza e a reverência do cumprimento, tudo enfim mostra quanto respeito e quanta dignidade se contém nos tradicionais estilos diplomáticos, dos quais o Conde se mostra aqui intérprete fiel, e que foram elaborados nos séculos áureos da civilização cristã.

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De sua parte, considere-se o Prior. Há como que um contraste entre seu grande vulto branco, ereto, robusto, estável, que exprime autoridade, segurança e paterna proteção, e a expressão fisionômica que parece neutra, impassível, serena, um pouco distante. O vulto exprime a atitude oficial do Prior. A fisionomia traduz o desapego, a simplicidade do homem. Pois não é ao homem enquanto tal, mas ao cargo, que a homenagem se dirige.

E, com o devido respeito, consideremos a posição do Pontífice. Sentado em um pequeno trono, ele não se levanta para receber a homenagem do embaixador. Entretanto, inclina ligeiramente o busto para se aproximar mais do Conde. Conserva sua mão na dele. Dá a toda a acolhida uma nota de amenidade muito marcada. E, mantendo-se embora inteiramente como Papa, dá todas as mostras da mais entranhada benevolência e do maior apreço para com o embaixador.

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Quatro atitudes, inspiradas numa visão muito hierárquica das coisas, todas nobres, dignas, honrosas, embora cada qual a seu modo. Em uma palavra, esplendor da humildade cristã e formosura de uma vida hierárquica...

(Plinio Corrêa de Oliveira, Catolicismo nº 70, Outubro de 1956)

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Tipos humanos característicos

Albrecht Dürer, o célebre pintor alemão (1471-1528), deixou-nos este auto-retrato (auto retrato aos 26 anos; Museo del Prado, Madrid), famoso não só pela beleza do modelo, como sobretudo pelo valor artístico do trabalho.

Deixamos de lado qualquer consideração estética ou artística, para considerar a tela do ponto de vista do ambiente, dos costumes e da civilização que nela se refletem. Dürer é um homem da Renascença, com todas as contradições, desvios, extravagâncias e atributos que se contêm neste apelativo. Ainda ligado à Idade Média, entretanto em sua fisionomia não se refletem os valores sobrenaturais de uma alma verdadeira e profundamente cristã. Ele é inteiramente natural em todos os seus predicados: inteligência lúcida e profundamente crítica, grande riqueza de personalidade, indiscutível originalidade de espírito, vontade de ferro. Vendo-o, não se dirá que é um cristão, mas não se poderá negar que é um homem ( na medida em que esta perigosa distinção pode ser aceita ). Era este gênero de homens que o Ocidente do século XVI produzia, formava, honrava, e proclamava como salientemente e tipicamente seus.

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Comparemos os valores naturais (pois queremos ficar estritamente neste terreno) de um homem-tipo de seu tempo, com os que possivelmente existem neste jovem de nossos dias.

Tal é o contraste, que a comparação até dói. Este pobre ser sem profundidade mental, sem personalidade definida, sem princípios, sem convicções, sem fibra - que parece saber apenas sorrir, e sorrir sem motivo preciso -, certamente não tem a grandeza de qualidades humanas de Dürer. Compare-se a distinção de um, com o laisser faire de outro; a seriedade de um e a profunda e substancial superficialidade do outro; a fibra de um e o jeito bon enfant do outro: o contraste não poderia ser maior.

Quem é este jovem? Não é um anônimo, nem um "marginal". Pelo contrário, seus colegas de uma grande universidade americana o proclamam a figura exponencial - do ponto de vista da personalidade e da simpatia - de todo o corpo discente. Este é o tipo humano que com mais facilidade atrai a estima, o interesse, o entusiasmo dos que têm uma mentalidade inteiramente formada segundo o gosto do século XX.

(Plinio Corrêa de Oliveira, Catolicismo nº 10, Outubro de 1951)

Dois ideais femininos

A Serva de Deus Maria Clotilde de Sabóia Napoleão (1843-1911), insigne não só por seu nascimento e por sua alta distinção pessoal, como também por sua virtude, será talvez elevada às honras dos altares, pois já se processa a causa de sua beatificação. Pela nobreza de seu porte representa ela o tipo característico da dama cristã no século passado, toda feita para a vida de sacrifício, principalmente no lar, para as grandes dedicações da mãe e da esposa segundo o espírito da Igreja. Apesar de muito feminina, espelha em seu todo uma firmeza notável, que não exclui, aliás, uma grande bondade. Em suma, pode ser tida como expressão autêntica do verdadeiro ideal feminino.


Ana Pauker (*) representa o arquétipo da mulher conformada segundo as normas do comunismo. Grosseira, masculinizada, não denotando nem o recato nem a dedicação que a situação da mulher na sociedade exige, é a virago desabrida e sem sentimentos, própria para a era de brutalidade e mecanicismo cujo advento o neo-paganismo moderno prepara.

(*) Ana Pauker (1893-1960) foi Ministra das Relações Exteriores da Roménia e líder oficiosa do Partido Comunista Romeno, após a 2ª Guerra Mundial.

(Plinio Corrêa de Oliveira, Catolicismo nº 21, Setembro de 1952)

O problema da velhice: maturidade ou decadência?

Nossa época sente vergonha da velhice. Este sentimento está tão radicado, que mesmo o que de longe a ele toca lhe desagrada.

Assim, tanto quanto possível, evita-se até parecer ter idade madura. Todo o mundo quer parecer moço. E não são raros os que almejam parecer mocinhos.

Nestas afirmações não vai qualquer exagero. Basta que cada qual olhe em torno de si, e quiçá até para si.

Toda a maquilagem feminina representa um esforço não só no sentido de diminuir a idade, mas de aparentar - tanto quanto o implacável rigor da natureza permita - uma mocidade quase próxima da adolescência. As cores e as formas dos trajes, as atitudes, os gestos, a linguagem, os temas de conversa, o riso, tudo enfim é explorado no sentido de acentuar esta impressão. Os homens não usam maquilagem, senão às vezes nos bigodes e nas têmporas. Mas cada vez mais os trajes típicos da idade madura vão sendo por eles abandonados: as linhas severas, as cores discretas, o feitio sóbrio vão cedendo lugar ao feitio esportivo, às cores claras, às linhas lampeiras. Isto se nota sobretudo nas praias de banho, onde não é raro ver graves professores, políticos de renome, banqueiros sisudos, vestidos precisamente como os netos: pés semi-descalços, cabelos ao vento, blusinha amarelo-canário, calção azul celeste que nem de longe chega ao joelho, felpo à mostra nos braços e nas pernas, risinho brejeiro na boca velha, uma luz factiça mantida à custa nos olhos cansados, e em tudo um tremendo esforço para ocultar uma idade que pertinazmente se atesta, se afirma, se proclama a si mesma por todos os poros.

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Por que tudo isto? Antes de tudo, porque o homem pagão de nossos dias vive para o prazer, e a idade do prazer é por excelência a juventude; pelo menos para os que não compreendem que a mocidade, como escreveu certo autor, não existe para o prazer mas para o heroísmo.

Mas há outra razão. É que a velhice, se pode representar a plenitude da alma, é certamente uma decadência do corpo. E, como o homem contemporâneo é materialista e tem os olhos fechados para tudo quanto é do espírito, claro está que a velhice lhe há de causar horror.

Mas a realidade é que, se um homem soube durante toda a vida crescer não só em experiência, mas em penetração de espírito, em bom senso, em força de alma, em sabedoria, sua mente adquirirá na velhice um esplendor e uma nobreza que transluzirá em sua face e será a verdadeira beleza de seus últimos anos. Seu físico poderá sugerir a lembrança da morte que se aproxima. Mas em compensação sua alma terá lampejos de imortalidade.

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Exemplo memorável do que afirmamos é, em nossos dias, Winston Churchill, a cuja inteligência rutilante de lucidez, a cuja vontade de ferro um grande povo confiou a mais difícil das tarefas, que é reerguer um Império decadente.

Nossa primeira gravura o apresenta aos 34 anos. É indiscutivelmente um moço bem apessoado, inteligente, de futuro. Mas nem seu olhar tem a profundeza, nem o porte a segurança, nem a fisionomia a força hercúlea da fotografia de Churchill em sua velhice, que apresentamos em nosso segundo clichê.

A mocidade sem dúvida se foi, e com ela a louçania. Mas a alma cresceu enquanto o tempo marcava implacavelmente o corpo. E esta alma é por si só a coluna sobre a qual repousa todo um Império.

Isto é - ainda mesmo na ordem meramente natural - a glória e a beleza do envelhecer.

Quantos e quão mais decisivos seriam esses comentários se quiséssemos considerar os dados sobrenaturais do assunto!

(Plinio Corrêa de Oliveira, Catolicismo nº 12, Dezembro de 1951)

domingo, 10 de julho de 2016

Popularidade de hoje e de outrora

O contraste entre a indumentária, a atitude, o porte destes dois homens - um Rei da França antes da Revolução, e um presidente dos Estados Unidos no século XX - é tão imenso que parece tornar impossível qualquer comparação. E, com efeito, não pretendemos estabelecer aqui um paralelo entre um homem e outro, o que seria perfeitamente desinteressante para esta secção, que não estuda homens pessoalmente considerados, mas somente sociedades humanas, costumes, ambientes e civilizações.

Para definir bem precisamente o ponto de vista em que nos situamos neste comentário - pois que se trata mais de um comentário do que de uma comparação - devemos lembrar antes de tudo um princípio de caráter genérico. Todo o grupo humano produz, por um processo de lenta elaboração psicológica, e quase diríamos de destilação, certos tipos que encarnam especialmente as qualidades e notas características do grupo. Assim, há jogadores de boxe com os mais variados traços fisionômicos, mas há um tipo ideal clássico de jogador de boxe, de que uns se aproximam mais, e outros menos, mas que, de certo modo, cada um realiza em si. O mesmo se poderia dizer dos locutores de rádio.

Há naturalmente entre eles a maior variedade fisionômica, e mesmo técnica. O modo por que se dirigem ao público, o modo por que apresentam a matéria, o timbre e a inflexão da voz variam quase ao infinito. Entretanto, considerado o assunto em tese, poder-se-ia dizer o mesmo de todas as profissões, desde as mais altas às mais modestas, desde as mais antigas às mais modernas. Ora, todo grupo humano sente uma especial inclinação pelos tipos que o exprimem caracteristicamente. É um reflexo muito explicável do amor que o grupo tem aos seus ideais, a sua mentalidade, e a seu próprio modo de ser. Daí a popularidade, não só de certos homens, mas de certos tipos literários que nunca tiveram existência real, e até certas figuras de caricatura e "charge", como Juca Pato, que representava o pequeno burguês sensato, observador fino e ao mesmo tempo algum tanto ingênuo, e Jeca Tatu, a caracterização pitoresca, se bem que muito exagerada, do caipira brasileiro.

Sentindo ao vivo a força da popularidade decorrente deste principio genérico, reis e chefes de Estado procuraram, em todo o tempo encarnar em si a alma nacional. Este propósito terá sido apenas instintivo em uns, mais nítido em outros, inteiramente explícito e intencional em alguns poucos, mas de um modo ou do outro - genericamente consideradas as coisas - todos os Chefes de Estado, em todos os tempos, procuram cercar-se de exterioridade próxima ou remotamente tendentes a espelhar um certo ideal social coletivo, constituindo-se assim alvo do apreço e da simpatia geral.


O primeiro clichê é um quadro oficial de grande circunstância, pintado por Rigaud [Hyacinthe Rigaud: Portrait de Louis XV, 1727-1729, Versailles, Musée National du Château], e representando Luiz XV revestido de todas as insígnias reais. Que o pintor tenha sido Rigaud, e o modelo Luiz XV, importa pouco a nosso estudo, pois que esta indumentária e estas insígnias se perdem, por assim dizer, na noite dos tempos, tendo servido também aos ancestrais do Rei. O que interessa é que se trata de um quadro oficial, em que a atitude, o porte, a expressão, a roupagem do modelo, e, pois, em conseqüência, em certa medida, a própria técnica do pintor obedecem a cânones já consagrados como capazes de impressionar favoravelmente e "gerar popularidade".

Paira no quadro uma atmosfera de majestade, acentuada pelo grande manto violeta forrado de hermínia, e bordado de flores de lis de ouro, pelo esplendor das insígnias reais. Defensor da Igreja, primeiro gentil-homem de seu Reino, reunindo exponencialmente em sua pessoa toda a distinção e requinte de uma nobreza que por sua vez é o expoente da própria nação, um Rei de França encarnava assim todos os ideais de uma sociedade em que a Fé, a tradição, a destilação de valores através de um processe formativo de base familiar, realizado durante séculos pelas famílias de escol, eram elementos dos mais essenciais das Instituições, geralmente aceitos e prezados pela psicologia coletiva. Quanto mais alto, mais poderoso, mais requintado o Rei, tanto mais ufano e dignificado o povo.

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Precisamente no tempo de Luiz XV, esta mentalidade começou a mudar, minando a sociedade e preparando a Revolução Francesa de que saiu todo o mundo contemporâneo.

Essencialmente igualitária, a Revolução Francesa modificou os critérios de popularidade. Os grupos humanos não se sentiram mais encarnados e representados por suas figuras exponenciais, pois que a figura exponencial é produto de uma seleção e toda a seleção é anti-igualitária. A popularidade cessou de convergir para os homens excepcionais, superiores, para se concentrar nos homens-tipo, nos homens massa. Daí o fato de os quadros oficiais representando os chefes de Estado de casaca, e com todas as condecorações, haverem perdido quase toda a capacidade de gerar popularidade. Para ser popular, o Chefe de Estado não deve provar que é mais do que os outros. Muito pelo contrário, deve provar que não é mais do que ninguém, que é como todo o mundo. Por isso, os quadros oficiais ficaram para as paredes dos grandes salões nobres que vivem vazios e fechados, exceto em raros dias de gala. E os chefes de Estado começaram a se fazer ver pelo público sobretudo em jornais e revistas, fotografados nas atitudes comuns da vida quotidiana. Procuram fazer esquecer pelo público, que são Chefes de Estado, para aparecerem como simples burgueses, na era da burguesia... Aí temos, pois, o Presidente Truman, numa fotografia de página inteira de uma revista americana, tocando burguesmente seu piano. Cumpre acentuar que isto não pode ser considerado tipicamente norte-americano. Estes ventos sopram no mundo inteiro, e na própria Europa não são raros os Presidentes e até os Reis que obedecem à mesma influência. Insistimos: não fazemos aqui um comentário sobre um homem e muito menos sobre um país, mas sobre uma ideologia e uma época.

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Assim sopram os ventos. E para onde sopram eles? Virá dia em que os Chefes de Estado recearão apresentar-se como burgueses, e preferirão o blusão proletário de Stalin? E em que os diplomatas adotarão as maneiras "fortes" de Ana Pauker?

(Plinio Corrêa de Oliveira, Catolicismo nº 4, Abril de 1951)